Poesia para ler antes de ir dormir

(e antes de sonhar)















Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que soube não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.


Fernando Pessoa

*

... E que depois de sonhar, a realidade se cumpra pra se ver, pra se sentir, pra se saborear.
As almas que temos são as que escolhemos ter. Mudam e também nós mudamos a cada instante, porque o tempo não pára e não perdoa os atrasos. Ou, se calhar, perdoa. Perdoa TUDO.

Só que eu não sou o tempo e o perdão divino não me assiste.
Eu não sou o tempo, passo nele ou ele passa por mim.
E a alma vai mudando a cada dia, cada instante.
E eu vou e fico, saio do lugar onde sempre estive, onde nunca vou estar, de facto.
Não. Saio do lugar onde nunca estive, sem saber para onde vou...
E volto para onde sempre estive. Aqui. Lá longe, mas, sempre, aqui.

E evito. Evito olhar para mim.
Conhecer-me a mim própria é um desafio maravilhoso.
Mas quero muito concretizar tudo o que sou ou serei, sempre sem me olhar,
sem espelho. O espelho mostra tudo. O que é bom e o que é mau.
Quero conseguir ver-me e reconhecer-me, sem olhar.

Só pelo tacto (tacteando, passo a passo),

Só pelo sabor (ao sabor dos dias e das noites, das madrugadas, das auroras e dos entardeceres iluminados),

Só pela visão (pelo que vejo, vislumbro pelo que me dislumbra e me entretece, pelo que se mostra e se deixa ver e perceber. não pelo que olho, mas antes pelo que vejo)

Só pelo cheiro (em cada inspiração, em cada gole de ar puro renovado e renovador, cada gota de oxigénio que me dá vida e me tráz o cheiro da alfazema e do jasmim, o cheiro da terra molhada e das folhas secas, o cheiro da água em estado líquido ou em vapor, o cheiro da água fria e da água quente)

Só pelo que ouço (melodias, vozes, sons. Nem todos os sons me soam, nem todos me falam. Os que chegam aos meus ouvidos e são acarinhados, dão sempre frutos)

Só pela alma... Qualquer alma que seja a minha. Qualquer que seja eu a sonhar ou acordada.

Fernando, palavras sábias, as tuas!

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